20 May 2008

Manufacturamos Realidades


Damos comummente às nossas ideias do desconhecido a cor das nossas noções do conhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida. Com pequenos malentendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes.
Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é aquele sistema de vida particular a que no geral se chama civilização. A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E, realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade. O objecto torna-se realmente outro, porque o tornámos outro.

Manufacturamos realidades. A matéria-prima continua a ser a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-se efectivamente de continuar sendo a mesma. Uma mesa de pinho é pinho mas também é mesa. Sentamo-nos à mesa e não ao pinho. Um amor é um instinto sexual, porém não amamos com o instinto sexual, mas com a pressuposição de outro sentimento. E essa pressuposição é, com efeito, já outro sentimento.


Fernando Pessoa, in "O Livro do desassossego"

1 comment:

  1. Texto muito bem escolhido.
    Faz-me lembrar o quanto estúpido é o catalogado humano. Colocamos sempre à frente da vida a nomeação, a identidade e uma verdade para que consigamos estabelecer uma existência segura - que não seja estranha a um determinado modo de pensar e agir.
    Identificamos as coisas tendo sempre como reflexo o sujeito e esquecemos a "coisa em si mesma" - que chatice! Esta é impossível de ser conhecida: pelo menos de um modo metódico, experimental, substâncial... não é possível fazer ciência com o desconhecido; contudo, o Homem construíu realidades paralelas na tentativa de descortinar o desconhecido. Não passam de ficções... mas com uma realidade fundamental para a existência do Homem. Criamos... criamos, imaginamos, sentimos, substâncializamos: caramba! - tomamos a realidade como se ela fosse nossa! Construímos outras com a pretensão de que elas são fundamentais! E de facto são! Somos humanos, homens - longe da origem, sempre a caminhar na direcção distante do "eu", distante do abismo. O que somos? Somos substâncias racionais logocentricas - o mundo é um objecto imenso ao dispor do Homem. Que sentido puro terá o mundo? que sentido puro terá o "eu"? Quando falamos da nossa identidade, falamos da identidade juridica: temos um nome, um número, um local, uma habitação, uma morada, uma profissão...
    Todo o pensamento racional dissimula a autenticidade - mesmo os sentimentos, estão sob o efeito de uma gramática (a gramática penosa), e quando sentimos algo já somos determinados por algo prévio; de maneira que "é, com efeito, já outro sentimento."

    É um texto genial.
    A minha tese foi sobre isto.
    Voltarei a escrever e a meditar.

    Victor Hugo

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